sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Oblivion

Primeiro, foi a bomba electromagnética.
Todos os aparelhos electrónicos deixaram de funcionar. A população saiu à rua, sem saber o que acontecera. O exército mostrou imagens à presidente. As crianças estavam nas ruas. Davam pontapés nas máquinas. Os velhos guardavam-nas. Sentados nas escadarias dos umbrais. A presidente deu a segunda ordem. Houve um barulho enorme. As crianças pararam. O reflexo nos seus olhos durou meio segundo. O clarão da segunda bomba destruiu prédios, ruas e umbrais.
Os filhos da cidade foram dizimados.

No fim do dia, a presidente chegou a casa. Pousou a sua carteira. Tirou e pendurou o casaco. Beijou o seu marido. Sentou-se e encostou-se a ele. Disse-lhe, “estou grávida”.
A vida persiste.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Countdown to Oblivion ...1

O marido está em casa. Ela não chega. A mulher não chega.
Os miúdos grunhiam, ranhosos, nas suas brincadeiras. Ninguém perguntava ao marido, como tinha sido o seu dia. Depois lembrou-se que ela nunca mais chegaria. Esfregou os olhos. Limpou os olhos. Soletrou, “Macdonald’s” e os miúdos correram e pularam, contentes.

Fast Food Fast Fuck Fast Forget Fast Forward.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Countdown to Oblivion ...2...

Eles avançam pelo corredor verde.
Os outros caminham pelos passeios sujos.
Abrem-se portas, cruzam-se enfermeiras, estacionam-se as macas.
Os prédios têm as suas entradas fechadas. As luzes estão fundidas. Os carros deixaram de apitar.
Eles avançam pelo corredor verde e a enfermeira pede-lhes para esperar.
Os outros caminham de máquina em punho, tiram fotografias às fachadas poluídas.
A enfermeira chama o médico.
Os sorrisos guardados na máquina.
Eles choram, abraçados, com a notícia do médico.
Os outros abraçam-se, simulando poses, fotografando-se.
Ele está numa cama, no hospital. O quarto limpo e cuidado. O soro ligado por tubos. A ventilação, inútil, trabalhando suave. As drogas para as dores, disponíveis, intocadas. Eles choram, querem vê-lo. O médico não os deixa olhar.
Ela está no meio do passeio. Porca e imunda, vertendo líquido pelas feridas, molhada pela chuva. A silhueta, contorcida pelas dores, mordida pelos ratos. Os outros passam por ela. Mas não olham.
Morte é morte.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Countdown to Oblivion 3...

O homem da guitarra pensa que está a tocar uma balada, quente, sórdida. Mas já não se ouve. Só lhe interessa o final. Sair do túnel. Avançar até ao arbusto. Mijar.
Mas não consegue. Espera um pouco. Tenta de novo. Esforça-se. Tem vontade. Mas não consegue. Algo no seu corpo mudou. Ele não consegue.

O homem das pinturas está em frente ao espelho. Os desenhos mudavam sempre. Desapareciam e ficava o corpo, imutável. Mas agora o corpo tinha uma estranha mancha. Ele agarrou no pincel. Sobre a pele, uma mancha escura. Fez movimentos com o pincel. Sobre o espelho, a tinta, imutável.

A embalagem no microondas. Ela com uma dor súbita e estranha. Potência regulada para 1000W. Ele a levá-la para o hospital com a dor invisível. O manípulo do temporizador, rodado para 1 minuto. No hospital os toques, apalpões, as tentativas em vão. O dedo, pressionando o botão START.
Primeira radiografia: inconclusiva.
Segunda radiografia: incompetência.
Terceira radiografia: incerteza.
Quarta radiografia: nova dúvida.
Quinta radiografia: estupidez.
Sexta radiografia: ingenuidade.
Sétima radiografia: porque sim.
A radiação sobre a carne. A radiação sobre o corpo.

Outra mulher não sabia o que fazer. O corpo é o último refúgio. Ela vê como o sangue lhe escorre pelas pernas.
A casa merecia ser suja.

Algo está errado. 

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Os Túneis III

A presidente aderiu ao facebook. Era a voz de todos. Podia agora aceitar todos como amigos. Ver que fotografias tinham. Que comentários faziam. Que causas apoiavam.
Queria conhecer as vozes que a compunham.

Lembrou-se do seu discurso que não era seu. Tinha a aplicação do facebook no telemóvel. Clicou “upload”. Carregou o discurso para a sua página. Depois, guardou o telemóvel, no bolso de trás das calças. Os assessores chamavam-na. Ela pediu um momento. Tinha de ir à casa de banho. Não o disse assim. Foi vaga. “Esperem só um pouco, por favor”. Entrou na casa de banho. Dirigiu-se a uma das cabines. Fechou a porta. Desapertou as calças. Puxou-as para baixo.
Ouviu um barulho, na água da retrete.
A presidente, de calças e cuecas para baixo, via o seu telemóvel afundar-se, com o discurso, os amigos, os likes e os comentários e os likes nos comentários. A verdade, era uma mentira afundando-se na merda da água.

Sim, a poesia tem os seus momentos.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A Social World on the Edge of Oblivion II

Os pc’s deixaram de funcionar.
Acabaram-se os comandos, os cd’s, os dvd’s, blue-ray’s, downloads, patches, keygens,… A energia não é um brinquedo.

We stand on the Edge of Oblivion.

Então as crianças trouxeram os pc’s para a rua, atiraram-nos ao chão, partiram-nos, pontapearam-nos. Desfizeram as máquinas.
A destruição é o prazer derradeiro.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O Discurso III

A presidente precisou de um momento só. Mas sabia as opções que tomara.
A sua vida era as pessoas.
A sua solidão era um homem: O seu marido.
Tentou explicar-lhe que era uma mulher. Que o amava. Mas ele não acreditou. A sua verdade deixara de ser credível.
A presidente ligou para o seu fantasma. Encomendou-lhe um discurso. Decorou-o. Tornou-o seu. Moldou nele a sua própria humanidade.
Salvou o seu casamento.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Cidade Obediente VII

Vagueava e era infeliz. Sofria como nunca quisera sofrer. Perdia forças. O tempo deixara de se dividir. Dormitava permanentemente.

Quando deixou de conseguir andar, pensou na vida.
Todos fazem os mesmos caminhos. Todos vão aos mesmos sítios. Todos regressam da mesma maneira Abandonaram-se os interstícios. Deixou-se de vaguear.

O objectivo não era a verdadeira doença.
Mas tinha o odor anti-séptico da imunidade.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

The spectacular is of very little use in the field of human habitat* IV

Entrou dentro de casa. Pousou a sua guitarra. Jantou calado. A sua guitarra no canto. Viu televisão sem som. A guitarra calada. Deitou-se.
Ouvia os seus vizinhos.
Conversavam através das paredes finas.
Confessavam coisas seguras, a dois, protegidos pela casa.
Ele ouvia tudo.
Mas ninguém o ouviria.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Os Túneis II

Hoje a mulher não se quis carregada. Entrou em casa. Perguntou ao marido, “como foi o teu dia?”.
Gritou pelos miúdos. Nada se ouviu.
Soletrou, “MacDonald’s”.
O marido respondeu. Os miúdos correram. “O dia foi bom”. Pularam contentes. E o marido mandou, “anda mulher”.
Nessa noite jantaram em família. Alimentando-se convenientemente. Os miúdos aos gritos com a merda dos brinquedos do Happy Meal. O marido, ofegante, procurando foder as artérias, mergulhando toda a batata no molho amarelo.
Ela sorriu. Abriu bem a boca e rasgou, de uma só vez, dois pedaços de hambúrguer, alface, queijo, cebola, pickles, molho “especial” e o pão com sésamo. Mastigando tudo até se tornar numa pasta compacta.
A poesia tem os seus momentos.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Apagaram-se as Linhas do Sofrimento

Na rua cruzam-se duas mulheres.
Uma veste-se do trabalho.
Outra veste-se desportiva.
Uma carrega as compras para casa.
A outra corre sem peso.
Uma está cansada.
A outra procura o cansaço.
Uma prepara o jantar.
A outra abre o frigorífico.

Algo se perdeu.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Cidade Obediente VI

Ela saía para andar e já nem sabia almoçar.
Esquecia-se de voltar para casa.
Lembrava-se que já não tinha casa.
De noite era violada por outro, igual a ela.
Não gostava.
Dormia sozinha e era miserável, ali, no meio da rua.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

The spectacular is of very little use in the field of human habitat* III

Ele chega ao seu prédio e este está sujo. Na fachada, a poeira e a poluição cobrem os graffitis e os tags manhosos.
Ele entra, sobe no elevador, vê escrito, dentro daquele compartimento, todo o tipo de nomes, riscados sobre superfícies metálicas, para perdurarem no tempo. Vê pilas e bonecos ordinários, corações ligados a símbolos matemáticos.
Sai no seu andar.
Roda a chave, na porta de casa.
Abandona o pincel e o balde vazio que trazia. Deixa-os do lado de fora. Pensa na maldita da gorda.
Entra em casa. Tudo está branco. As paredes, o chão. O hall não tem nada. A sala também não. Dirige-se à casa de banho. Despe-se e introduz tudo no cesto da roupa. O espelho mostra-o nu.
Toma banho. Quando sai, o espelho está embaciado. Ele desenha sobre o espelho.
No dia seguinte, repete tudo. Mas, antes de tomar banho, repara que o espelho perdeu os seus desenhos. De novo, só sobra ele, nu.


* Shadrach Woods

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Cidade Obediente V

Ela variou nos percursos que fazia, a pé.
Descobriu novos caminhos pela cidade.
Descobriu lugares que nem sequer tinham pessoas.
Esqueceu-se de ir trabalhar.
Esqueceu-se que havia uma hora de almoço.
Voltou para casa.
O marido trocara-a, por outra.
Ela não se deitava.
Ia andar de noite.
Esquecia-se que era de manhã.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Cidade Estagnada III

Gorda, suada e pobre. Ela regressa a casa. Não chove, mas carrega na mesma o guarda-chuva, porque lhe compete carregar o peso da incógnita.
Chega ao muro que fora amarelo. Vê que muda, outra vez. Vê um homem, a pintar o muro, a escrever no muro. Vê o balde de tinta, o amplo pincel e vê que ele não lhe liga.
A gorda ergue o guarda-chuva e com ele, bate no homem.
O homem, a princípio não reage, surpreso. Depois riposta. Prega-lhe um murro. Ela cai, tropeça no balde, aterra sobre a tinta.
Regressa a casa. Carregada, suja, magoada, pintada, suada, gorda, pobre e miserável. Ridícula, por algo tão simples como existir.
Pergunta ao marido, “como foi o teu dia?”.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Fantasma no Escritor Fantasma

Ele escrevia apenas palavras. Mas nunca lhes dava uma voz.
Escrevia para os outros o lerem. Alto.
Escrevia para que os textos não fossem seus.
Entregou o discurso à presidente. Foi para casa. Beijou a sua mulher. Jantaram os dois. Luz das velas. Vinho morno. Talvez amor.
De madrugada, na cama, depois de tudo, ele quis conversar. Falou sozinho durante minutos. Ela calou-o.
Às vezes não gostava de o ouvir.
Às vezes não parecia ele.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Cidade Obediente IV

Ela passou a ir a pé, para o trabalho.
Chegava atrasada e era ameaçada.
Mesmo assim, saía à hora do almoço, apenas para andar.
À tarde, chegava atrasada.
Depois de mais ameaças, regressava a casa, a pé.
Não encontrava o marido.
Deitava-se e sorria sozinha.
Dormia.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

A Social World on the Edge of Oblivion I

We Stand…

As ruas enchem-se com as crianças.

On the Edge of Oblivion.

Já não há brinquedos com que brincar. Os pais desistem num canto. Aos putos resta-lhes agarrar no giz.

We stand on the Edge of Oblivion.

Traçar a recta na rua. Sobre o alcatrão. Desenhar as linhas.

The Edge of Oblivion.

Os velhos vivem os umbrais. As crianças saltam. Esfolam joelhos. O precipício é a rua.

A sirene toca. Os velhos no umbral enchem as suas rugas com marcas da emergência. Os pais desistem encolhidos, sob os sons encarnados. Os miúdos traçam os seus jogos, com o sangue dos joelhos.

We stand on the Edge of Oblivion.
We stand on the Edge of Oblivion.
We stand on the Edge of Oblivion.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

The spectacular is of very little use in the field of human habitat* II

São duas caixas. Cada uma contém uma porção individual. Ela poisa-as sobre o balcão da cozinha. Não há panelas, não há tachos nem travessas. A cozinha está limpa. A ilustração nas caixas mostra uma refeição colorida, sobre um prato, fumegante. Não há erro, não há imperfeição.
As imagens alimentam tudo o que não é fome.
De dentro das caixas de cartão, ela retira as embalagens de plástico, compartimentadas. Cada elemento da refeição, separado. A caixa de cartão sugere: misturar depois de pronto. Instrui: 1 minuto no microondas, a 800 W.
Ela assim o faz. Duas embalagens. Dois minutos, um a seguir ao outro.
Ela serve o jantar em dois pratos.
O resultado não se parece nada com a imagem.
Ele aguarda, desapontado. Desejava as panelas sujas, os tachos, as travessas e ela, de avental, a cozer, a fritar, a mexer. A sua mulher, a cozinhar.
Mas comeu, porque a fome é animal.


*Shadrach Woods

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O Discurso II

Entregaram o discurso à presidente. É preciso medo, disseram-lhe.
O medo ainda pertence ao lado animal. A obediência tem o seu lado irracional.

A presidente leu o discurso. Deu-lhe uma voz. Decorou-o primeiro. Conferiu-lhe verdade depois.
Recomendaram-lhe falar em inglês.
O povo aplaudiu, sem perceber. Ela falava noutra língua. Era boa presidente. Falava línguas que eles não sabiam. Era-lhes superior.
O resto aplaudiu igualmente. A presidente era um deles. Também sabia falar noutra língua. Era-lhes igual.
A presidente inspirou, antes da última frase do discurso. Ensaiara-a em frente a um espelho. Queria gritar sem o parecer fazer. Ser imponente, sem subir a voz.

“We Stand on the Edge of Oblivion”
“We Stand on the Edge of Oblivion”
“We Stand on the Edge of Oblivion”

O medo domestica os animais.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Cidade Obediente III

Ela variou nos transportes para o trabalho, optou por carreiras diferentes.
Saía à hora do almoço para apanhar ar.
Apanhava transportes diferentes para regressar a casa.
Não jantava com o marido.
Ele nem lhe perguntava por amor.
Dormia.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O Discurso I

Uma presidente existe para traduzir. Procura saber as vozes do povo. Transmite-as.
Mas a voz da própria presidente tem peso: Vale mais que as outras.
A presidente fala e as vozes do povo consentem.
O povo é incapaz.
A confiança é a sua melhor desculpa.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Cidade Estagnada II


Ela está na paragem. Gorda. Carregada. Suada pelo peso. Suando porque é pobre e merece cheirar mal. Mesmo sem trabalhar. Cheiram todos mal.
O autocarro não vem.
Há greve.
As pessoas na paragem vão-se acumulando. Aconchegam os seus cheiros. Juntinhos.
Começa a chover.
Debaixo da cobertura da paragem tornam-se compactos. Ninguém se quer molhar. Todos têm guarda-chuva. Ninguém o abre. Receiam por medo à diferença.
O dia passa. Eles tiveram sempre na paragem. Fazendo uma ligeira pausa para almoço.
No fim do dia, gorda, carregada e suada, ela regressa a casa.
Prepara o comer e pergunta ao marido, “como foi o teu dia?”.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Cidade Obediente II


Ela passou a apanhar o autocarro até ao trabalho.
Lá, estava sentada o dia inteiro.
À tarde apanhava a mesma carreira, para casa.
Jantava com o seu marido.
Estava cansada para amor.
Dormia.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Os Túneis I


Ele toca a sua guitarra. Sempre no mesmo túnel. Cheira a mijo.
O som propaga-se melhor ali. Chega a quem atravessa. O túnel. Une dois pontos. Como se a música fosse a passagem. Eles passam pelo som.
No fim, ele pára. Não toca mais. Sobe as escadas para a superfície. Vê um jardim. Mija-lhe num arbusto.
A poesia tem os seus momentos.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Cidade Estagnada I


A mulher fazia sempre um pequeno percurso até à paragem. Percorria apressada junto a um muro amarelo. Ela gostava do muro amarelo.
O seu quotidiano era a sua casa.

Pintaram o muro para anunciar uma greve. Deixou de ser amarelo.
Nesse dia a mulher parou junto ao muro. Há algo no poder de parar.
Parar muda. Apenas a insignificância.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Cidade Obediente I


Um dia, parada, ela pensou: o objectivo é a verdadeira doença.

Todos os dias ela ia de carro até ao trabalho, através do mesmo caminho.
No trabalho, estava sentada o dia inteiro.
À tarde saía, ia de carro para casa.
Jantava com o seu marido.
Fazia amor com ele.
Dormia.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

The spectacular is of very little use in the field of human habitat* I


A mulher entra em casa. Acende as luzes. As superfícies são planas. Estão limpas. Nada fora do lugar. Os objectos e os espaços compostos por ligas metálicas e plásticos brancos. A mulher não vê nada de errado.
Senta-se.
A janela é ampla, sem cortinas. Fria. A cidade é uma imagem estática. Bonita. Tudo está longe.
A mulher não sabe o que fazer.
O seu refúgio é a escultura. A casa merece ser suja.


* Shadrach Woods

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Cidade Sem Sentido



Até ao fim do ano, as Cenas irão publicar um conjunto de textos. Estes vão lidar com formas de habitar a cidade.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

27. Charles-Édouard Jeanneret e o Fim


Charles-Édouard nadou.
Mas porque escolhera ele nadar?

Pintava de manhã. Projectava arquitectura de tarde.
Era poético, de manhã.
Prático, de tarde.
No meio, naquela hora em que almoçava, o que era?
Um mero corpo. Alimentando-se.

Pintava e falhava de manhã. Projectava e falhava de tarde.
No meio era um mero corpo. Alimentando-se.

Pintava e às vezes nem sabia se falhava, de manhã.
Projectava e às vezes a arquitectura falhava, de tarde.
No meio continuava a ser um mero corpo. Alimentando-se.

Pintava e pintar é falhar, de manhã.
Projectava e a arquitectura é falhar, de tarde.
No meio, um mero corpo. Alimentando-se.

Pintava e falhava, porque arte é só isso: Falhar. De manhã.
Projectava e falhava, arquitectura é isso: Falhar. De tarde.
No meio. Corpo. Alimentando-se.

Falhar é o único caminho para não falhar.
Só não falha quem morre.
Porque morrer é o fim.
O fim é a perfeição.

Charles-Édouard nadou até não aguentar mais.
Morrer assim, era um mero corpo. A falhar.



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quinta-feira, 17 de novembro de 2011

26. Star Wars e a destruição


Existe um mundo.
Este mundo é desenvolvido. De forma rápida e extraordinária. Mas, ao mesmo tempo que o mundo se desenvolve, outras coisas se perdem.
Fala-se da poluição, do aquecimento global, do consumo de energia, fala-se dos problemas causados pelo desenvolvimento.
Tudo parece custar uma parte do mundo.

Também o homem, que habita o mundo, se desenvolve e evolui.
Se tudo o que é desenvolvido custa uma parte do mundo, então tudo contém uma pequena parte de destruição. Tudo. Desde os objectos que facilitam mobilidade, aos objectos que salvam vidas. Todos são responsáveis por uma pequena parte da destruição.

Assim, o homem assume isto: destruição.
Esta não é mais uma consequência. Quando já tudo foi construído, resta construir a destruição.
Um objecto de destruição.
Tudo o que fora construído é destruído por esse objecto.

A lógica impõe a questão:
Qual é a função da destruição, quando já nada resta?

Para que a vida torne a ter sentido, os homens tornam a construir.
Fazem-no sobre a única coisa que resta, o objecto que tudo destruiu.
Mas tudo o que é construído parece custar uma parte do objecto. Porque tudo o que é desenvolvido contém uma pequena parte de destruição.
Assim, o objecto padece do seu próprio princípio.

A lógica tornará a impor a mesma questão.



quarta-feira, 16 de novembro de 2011

25. Corto Maltese e a sorte


Uma ferida é uma marca. As marcas são singularidades. A singularidade é a rota do destino.
Corto tinha uma mão incompleta. Não lhe faltavam dedos, porque o lado funcional nem sempre serve para completar. Faltavam-lhe linhas. A mãe era cigana, as linhas eram os seus olhos. Mas na palma dele faltava-lhe a linha da sorte.

Corto agarrou numa faca. Cravou a lâmina na pele e sangrou uma linha.
O destino é uma ferida. Com ele, Corto traçou a sua própria sorte.



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terça-feira, 15 de novembro de 2011

24. Jonathan Franzen e o seu Walden


Consequências da liberdade: O mundo tem demasiadas pessoas.

Para Jonathan, o Walden de Thoreau falava sobre liberdade.
Mas parecia-lhe paradoxal, um lugar tão ermo como esse lago poder estar na génese do excesso. Jonathan quis perceber a essência desta liberdade. É um homem contemporâneo, quis perceber a transformação do seu mundo.
Então procurou desenhar o princípio e desenhou um novo Walden. Mas como não sobra espaço no mundo, teve de o fazer junto a um condomínio de luxo. Nessas casas novas e modernas, as mulheres (porque este é o seu século) abriam as portas para os seus gatos pularem na natureza. Dessa natureza, faziam parte os pássaros.
Os gatos povoaram o lago.
Os pássaros desapareceram.
A liberdade doméstica sobrepusera-se ao lado selvagem.
Repito, Jonathan é um contemporâneo.



segunda-feira, 14 de novembro de 2011

23. John Cage e o silêncio no som


John experimentou compor o silêncio.
Apareceu no palco e toda a imensa plateia bateu palmas. Depois fez-se silêncio.
Abriu a pauta e ficou imóvel.
Silêncio.
Alguém tossiu.
A voz de um homem tossiu e um telemóvel tocou.
A voz rouca de um homem tossiu, um telemóvel ligeiro tocou e uns dedos bateram no braço de uma cadeira.
A voz rouca e seca de um homem tossiu, um telemóvel ligeiro tocou suave, uns dedos bateram como um piano o braço de uma cadeira e uma mão coçava a sua cabeça.
A negra voz rouca e seca de um homem tossiu, um telemóvel ligeiro tocou suave uma variação, uns dedos bateram como um piano as teclas do braço de uma cadeira, uma mão coçava a pele da sua cabeça e uma mulher roía as unhas.
A negra voz rouca e seca de um homem tremido tossiu, um telemóvel ligeiro tocou suave uma variação em crescendo, uns dedos bateram como um piano as teclas perras do braço de uma cadeira, uma mão coçava a pele que se desfazia na sua cabeça, uma mulher roía a parte branca das unhas e um tronco roçava-se no tecido da cadeira.
John executou, perante os holofotes, um movimento de sombra negra, o seu toque na pauta foi rouco e seco, tremente, levantou ligeira a folha com a variação, os seus dedos cresciam, o piano mantinha-se imóvel, a impressão digital era pele que se desfazia, o papel roía-lhe a mão e não demorou, até a página branca roçar o seu fim.
Fechada a pauta, John levantou-se e todos bateram palmas.
O silêncio tecera o seu som.



sexta-feira, 11 de novembro de 2011

22. John Cage e o som do silêncio


Encaminharam John pela universidade. O engenheiro que o guiava não poupara elogios. A câmara anecóica de Harvard será, disse-lhe o engenheiro, o lugar mais silencioso onde alguma vez estaria. Entraram os dois. John examinou primeiro com os olhos a estranha textura das paredes.
Surgiu uma voz. Chamavam pelo engenheiro, o homem pediu desculpa, teria de sair por instantes.
John ficou sozinho na câmara. Mas eis que, naquela sala sem som, John ouviu algo. Dois sons que nunca havia escutado mas que, mesmo assim, eram sons.
O engenheiro entrou de novo. John contou-lhe, disse-lhe que, naquela sala onde deveria imperar o silêncio, ele ouvira algo. Dois sons: um alto e um baixo.
Então o outro disse-lhe que o alto era o seu sistema nervoso a trabalhar, o baixo era o seu sangue a circular.
Então John aprendeu que o silêncio teria sempre um som.



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quinta-feira, 10 de novembro de 2011

21. Apocalypse Now


Um rio é um espaço entre a terra. Mas, para algo que é uma fenda na continuidade, apresenta uma lógica demasiado simples. O rio corre só numa direcção.
Um barco desafiou a lógica do rio. Desafiou a sua direcção: Subiu o rio.

O barco começou no fim do rio. Ali, a corrente transportava corpos pelas águas encarnadas. Pedaços de homens, feridas húmidas a boiar.
O fim é sempre o homem.

O barco continuou a subir o rio. Então encontrou armas, no fundo difuso da água. Formas de matar. O lado mecânico da destruição. O homem constrói para destruir.
Antes do fim do homem há sempre a arma.

O barco continuou a subir o rio. Então, nas suas margens, encontrou garrafas de álcool e restos de cigarros. Aquilo que existe para lá da mera sobrevivência: Os vícios, o rasto civilizado do homem.
O vício é a razão que antecede a arma.

O barco continuou a subir o rio. Então, por todo o lado, encontrou a mutilação dos animais. Restos de fome. Ossos de vaca, de cabra, de galinha, de cão, de rato. A fome é a memória do que outrora foi visível. A sua presença está em tudo o que sobra.
A fome é a guerra animal do homem sem vício.

E o barco subiu até ao início do rio. E lá havia tão pouco que até a água escasseava. O rio perdia-se. Ia desaparecendo.

Então os homens do barco tiveram sede. E mataram-se para beber. Depois tiveram fome. E mataram-se para comer. Quiseram vícios e deram-se ao luxo de matar para os ter. E para não morrer, para sobreviverem ao massacre do barco, mataram-se pelas armas uns dos outros.
No fim do rio há sempre corpos a boiar.



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quarta-feira, 9 de novembro de 2011

20. Aldo Van Eyck e Herman Haan no país dos Dogon


Van Eyck e Haan precisaram de saber o mundo para lá da Europa.

Van Eyck queria visitar os Dogon porque assim poderia aprender com eles.
Viajou para longe e chegou à terra dos Dogon, onde escolheu uma casa fora da aldeia. Tinha cama. Tinha água. Um alpendre onde jantava nas noites quentes.
Quando Van Eyck visitava a tribo, era um estrangeiro que visitava a tribo.
Quando a sua viagem chegou ao fim, Van Eyck descobriu que aprendera muito sobre os Dogon.

Haan aprendeu muito sobre si e descobriu que a sua viagem nunca teria fim.
Enquanto Haan vivia com a tribo, era um estranho que vivia com a tribo. Não tinha cama. Não tinha água. Nem um alpendre. Só as noites quentes. Escolhera ficar dentro da aldeia porque as viagens interiores são longínquas. Só assim atingiu o seu âmago.
Haan pôde aprender-se com os Dogon. Mas quisera mesmo visitá-los?



terça-feira, 8 de novembro de 2011

19. Dostoiévski e o Crime e Castigo


A vida são dois passos que se repetem e fazem o homem andar. É o passo direito e o esquerdo. O direito e o esquerdo.
Li um livro que falava sobre andar. Dava nomes aos passos, o esquerdo era o crime, o direito, o castigo.
A grande mensagem no seu final?
Simples: Anda menos.
Senão, um dia, deixas de distinguir o passo esquerdo do direito, e sem querer, dás início a uma história.



segunda-feira, 7 de novembro de 2011

18. O Fio da Navalha e os livros doentes

Há livros que sempre quis exibir na minha estante. Livros de lombadas simples, onde só interessam as letras que formam o seu nome, mas que escondem os retalhos da minha própria vaidade.

VEJAM.
OBSERVEM.
ADMIREM.
Tudo isto que já li.

Mas há livros que escapam a esta condição vã, porque há livros que não foram feitos para o pó das estantes. Há livros como o meu Fio da Navalha. Perdi-o, e assim vejo as suas páginas amarelas e estragadas serem folheadas por gente de todo o lado, vejo-o longe, noutro país, quem sabe até na Índia, caído no chão, tocado pelas mãos de um leproso, tocado por gestos iguais. O toque é o primeiro gesto da união. Naquelas páginas dobradas, estragadas, marcadas por essa união, reza-se a sífilis do leitor. A doença é uma diferença que se abate sobre o corpo. Porque todos sabem que a diferença é o motor da saudade, agora as personagens do livro, padecem dessa estranha condição.

Eu deixo o espaço vazio na estante. O espaço reservado a este livro doente. Mas se um dia o recuperar, se um dia ele preencher o espaço que sobra, talvez a diferença se abata sobre mim. Então terei saudades do vazio.



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sexta-feira, 4 de novembro de 2011

17. Hopper e os espaços entre a vida.

Se calhar Edward um dia resolveu guiar. Escolheu duas cidades, em pontas opostas. Percorreu esse caminho. Em ambas as cidades conhecia a vida. Mas no seu intervalo não existia nada. Os pequenos edifícios eram ocos. As pequenas pessoas eram ocas. As poucas acções eram ocas. Como se o caminho fosse o inverso de um túnel, como se tudo fosse falso.
Quando chegou à cidade tentou sentir de novo a diferença. Mas não conseguiu. Tentou (esforçou-se!) aprofundar a questão da realidade. Aceitou o óbvio. Das janelas do seu prédio via outros prédios. Mas os edifícios eram ocos. As pessoas eram ocas. As poucas acções eram ocas.
Edward era americano, resignou-se em habitar a fachada.



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quinta-feira, 3 de novembro de 2011

16. Mokélé M’Bembé

Todos os homens precisam do fracasso.

Um homem viveu os seus 74 anos. Gastou-os a procurar uma coisa que não existia. As coisas podem ter muitas formas. As coisas nem sempre se distinguem.
Existem definições esguias.
Um homem gastou 74 anos a procurar uma coisa que não sabia o que era.

Para morrer, imaginou que tudo valera a pena.
Não há qualidade mais humana que o fracasso.



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quarta-feira, 2 de novembro de 2011

15. Joy Division


Esqueçam o passado. Esqueçam a merda nazi da coisa. Foquem-se apenas na expressão: Joy Division.
E se a alegria pudesse ser dividida. E se o prazer, se todas as coisas boas do mundo, tudo aquilo que um homem deseja, quer, tudo aquilo que ele sente,…
E se tudo isso estivesse dividido por duas mulheres?
Se cada uma fosse uma forma de felicidade e com isso fosse uma forma de sofrimento?
Então a causa da separação seria o amor.
Então, sim: a cozinha, o Herzog, o Iggy e a corda.

Só tenho pena é da miúda: “como morreu o pai?”
He suffered of joy division.



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terça-feira, 1 de novembro de 2011

14. The Doors can’t see your face in their minds

Que indefinições existiriam na mente de Jim? Estou a vê-lo no meio de um deserto, porque ele sempre gostou de os imaginar. Se calhar por o deserto ser todo igual e não ter sítio próprio. Jim pode encontrar quem quiser, mas as pessoas no deserto contêm a mesma indefinição que o próprio deserto. A definição padece da mente. Talvez um fantasma advenha daqui. De uma deterioração chamada transparência. A música de Jim era assombrada.



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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

13. Gonzalo Torrente Ballester e talvez a morte

Não fosse a boleia dada pelo diabo e teria, por certo, perdido a morte de Gonzalo. “Agora, já toda a Galiza se pode elevar nas brumas”, disse-me o diabo, que era padre jesuíta, como é óbvio. Foi o mesmo diabo quem, sorrindo, me apresentou toda a mui católica família de Gonzalo, a qual cumprimentei religiosamente. Finalmente vi Gonzalo, estendido no caixão, e mostrei-lhe a Doménica. O morto respondeu-me, com aquele seu ar mandrião, “essa já eu escrevi deste lado”.



sexta-feira, 28 de outubro de 2011

12. Khan morto e a identidade

Lou sonhou como era morrer sem cicatrizes.
As flores em torno do seu caixão posicionavam-se simétricas. Os bilhetes apresentavam condolências. Vinham de vários ateliers de arquitectura. Lia-se neles: “para o nosso colaborador”; “para o nosso antigo colaborador”; “para o sr. arquitecto”. A sua esposa, porque era assim que toda a gente se referia à sua esposa, pagou o funeral com o dinheiro que haviam poupado. E não chorava. A vida é assim, ela aceitava-a.

Um dia, Lou sonhou como era morrer sem cicatrizes: era confortável.
Então acordou, pegou no seu bilhete de identidade e riscou-o: riscos sobre o seu nome, riscos sobre a sua morada.
O seu nome eram as cicatrizes.
A sua morada eram as cicatrizes.
A sua identidade…
...e foi trabalhar.



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quinta-feira, 27 de outubro de 2011

11. Pêro Covilhã e a identidade

Cumpriu os rituais todos. Ninguém nele notou. Saiu da cidade santa.
Só quando já não via Meca, se lembrou: não sabia quem era.
Não se importou. Imaginou uma espada e um reino longínquo e misterioso.
Partiu e todos os historiadores trataram de o saber.



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quarta-feira, 26 de outubro de 2011

10. Pratt e o trabalho

O homem foi morto mesmo em frente a Hugo. Depois de o fazer, o assassino olhou para Hugo, era teu amigo? Hugo pintava e encolheu os ombros. O assassino sorriu e disse que gostava dele. Ofereceu-lhe boleia e nessa noite beberam uns copos. O resto da semana, Hugo trabalhou.



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terça-feira, 25 de outubro de 2011

09. Pulp Fiction

Prever demais implica sempre uma morte. Porque o futuro de um homem tem um limite curto. Daí um profeta ter nas suas palavras algo de assassino. Noutro dia conheci um profeta, ele estava na rua, comia um hambúrguer (“royal with cheese” se aceitarem o intertexto). Respondeu-me o futuro antes de eu lho perguntar. Disse-me simplesmente que íamos morrer.



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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

08. Ricardo Reis e os outros

A Carolina, na Argentina, falava com os argentinos. Estes, disseram, gostavam muito de ler Saramago. Depois, como se fosse óbvio, falaram do Pessoa. Ao que um deles lhe perguntou: “E esse tal de Ricardo Reis, que tem ele a ver com o Pessoa?”



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sexta-feira, 21 de outubro de 2011

07. Pessoa e os outros

Um dia, Fernando deixou de me responder às cartas. Quando o tornei a encontrar, ele pediu desculpas. Eu compreendi. Era um homem demasiado interessante. Daí se dar com si próprio.



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quinta-feira, 20 de outubro de 2011

06. Orwell e a Máscara de Alan Moore

Existem homens que são diferentes de outros homens.
Então acontecem as revoltas:
E, nos países europeus, todos passam a usar uma máscara.
E, nos países árabes, todos passam a usar uma máscara.
E, nos países africanos, todos passam a usar uma máscara.
E, na China e nos países asiáticos, todos passam a usar uma máscara.
E, na América do Sul, nos Estados Unidos e em todo o mundo, todos passam a usar uma máscara. E todos ficam iguais. Já ninguém se distingue. Os anos passam. Há uns que se tornam mais iguais que outros.
Até que um dia, alguém tira a máscara.



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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

05. Siza e algo mais

A mão tremia-lhe porque a mão é uma voz. O fumo, de um cigarro, oculta. Não é mais que uma neblina. É português, e os portugueses querem sempre ocultar o incompreensível, para lá do nevoeiro. As palavras são sons cheios de anos. Arrasta a voz da mesma forma que arrasta uma recta. A mão treme e a recta já não é perfeita. Mas não é a perfeição feita de imperfeições? A voz que diga que sim, que não, que diga o que quiser. Por detrás do fumo, continua a mão.
Tremer é apenas algo mais.



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terça-feira, 18 de outubro de 2011

04. Dora e a fome

Na fotografia só estava ele e o cão. Ele, acabado de sair da água, de fato e prancha na mão. O cão, depois de esperar, ao seu lado, a correr.
Mas, depois da fotografia, ele subiu a estrada até à carrinha. Tirou o fato. Limpou-se a uma toalha coçada. Deitou-se e o cão ganiu. Dora mandou-o calar. Tinha fome. Mas há imagens que são alimento.



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segunda-feira, 17 de outubro de 2011

03. Bolaño e os Sonhos

Encontrei o Roberto e ele era uma estrela de rock. Segurava um cigarro e, como todos os mortos, tentava parecer uma fotografia. Disse-me.
- Mais importante que foder, é ver o Mário de Sá-Carneiro foder.
Nessa noite, segui pelos caminhos vicinais.



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sexta-feira, 14 de outubro de 2011

02. Hemingway e o Adeus às Armas

Ernest pensava no futuro:
Um homem sem pernas descobre que consegue viver, embora viva sem pernas.
Para avançar não são necessárias pernas. Avançar não é uma questão motora.

Ernest pensava na lógica:
Um homem sem vontade de viver descobre que consegue viver, embora viva sem vontade.

Mas isso eram demasiadas suposições e Ernest era um tipo real. Imaginar era avançar e ele não sabia imaginar.
Então usou as pernas e escreveu um livro sobre recuos. No fim, não lhe restava nada.



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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

01. Tadao Ando antes do betão

Antes de se perceber o que está para lá das palavras, talvez seja necessário perceber o que existe antes.
Compreender que são apenas marcas de tinta preta, sobre a textura e a espessura do papel. Como o antes da visão é o tacto, tudo isto se pode descobrir com a mão. Assim se descobre a capa de um livro como uma crosta, daí que oculte tantas feridas. Mas esta última metáfora é coisa de escritor e Tadao, para lá das mãos (do boxe, da cofragem), queria era ser arquitecto.



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