sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Oblivion

Primeiro, foi a bomba electromagnética.
Todos os aparelhos electrónicos deixaram de funcionar. A população saiu à rua, sem saber o que acontecera. O exército mostrou imagens à presidente. As crianças estavam nas ruas. Davam pontapés nas máquinas. Os velhos guardavam-nas. Sentados nas escadarias dos umbrais. A presidente deu a segunda ordem. Houve um barulho enorme. As crianças pararam. O reflexo nos seus olhos durou meio segundo. O clarão da segunda bomba destruiu prédios, ruas e umbrais.
Os filhos da cidade foram dizimados.

No fim do dia, a presidente chegou a casa. Pousou a sua carteira. Tirou e pendurou o casaco. Beijou o seu marido. Sentou-se e encostou-se a ele. Disse-lhe, “estou grávida”.
A vida persiste.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Countdown to Oblivion ...1

O marido está em casa. Ela não chega. A mulher não chega.
Os miúdos grunhiam, ranhosos, nas suas brincadeiras. Ninguém perguntava ao marido, como tinha sido o seu dia. Depois lembrou-se que ela nunca mais chegaria. Esfregou os olhos. Limpou os olhos. Soletrou, “Macdonald’s” e os miúdos correram e pularam, contentes.

Fast Food Fast Fuck Fast Forget Fast Forward.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Countdown to Oblivion ...2...

Eles avançam pelo corredor verde.
Os outros caminham pelos passeios sujos.
Abrem-se portas, cruzam-se enfermeiras, estacionam-se as macas.
Os prédios têm as suas entradas fechadas. As luzes estão fundidas. Os carros deixaram de apitar.
Eles avançam pelo corredor verde e a enfermeira pede-lhes para esperar.
Os outros caminham de máquina em punho, tiram fotografias às fachadas poluídas.
A enfermeira chama o médico.
Os sorrisos guardados na máquina.
Eles choram, abraçados, com a notícia do médico.
Os outros abraçam-se, simulando poses, fotografando-se.
Ele está numa cama, no hospital. O quarto limpo e cuidado. O soro ligado por tubos. A ventilação, inútil, trabalhando suave. As drogas para as dores, disponíveis, intocadas. Eles choram, querem vê-lo. O médico não os deixa olhar.
Ela está no meio do passeio. Porca e imunda, vertendo líquido pelas feridas, molhada pela chuva. A silhueta, contorcida pelas dores, mordida pelos ratos. Os outros passam por ela. Mas não olham.
Morte é morte.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Countdown to Oblivion 3...

O homem da guitarra pensa que está a tocar uma balada, quente, sórdida. Mas já não se ouve. Só lhe interessa o final. Sair do túnel. Avançar até ao arbusto. Mijar.
Mas não consegue. Espera um pouco. Tenta de novo. Esforça-se. Tem vontade. Mas não consegue. Algo no seu corpo mudou. Ele não consegue.

O homem das pinturas está em frente ao espelho. Os desenhos mudavam sempre. Desapareciam e ficava o corpo, imutável. Mas agora o corpo tinha uma estranha mancha. Ele agarrou no pincel. Sobre a pele, uma mancha escura. Fez movimentos com o pincel. Sobre o espelho, a tinta, imutável.

A embalagem no microondas. Ela com uma dor súbita e estranha. Potência regulada para 1000W. Ele a levá-la para o hospital com a dor invisível. O manípulo do temporizador, rodado para 1 minuto. No hospital os toques, apalpões, as tentativas em vão. O dedo, pressionando o botão START.
Primeira radiografia: inconclusiva.
Segunda radiografia: incompetência.
Terceira radiografia: incerteza.
Quarta radiografia: nova dúvida.
Quinta radiografia: estupidez.
Sexta radiografia: ingenuidade.
Sétima radiografia: porque sim.
A radiação sobre a carne. A radiação sobre o corpo.

Outra mulher não sabia o que fazer. O corpo é o último refúgio. Ela vê como o sangue lhe escorre pelas pernas.
A casa merecia ser suja.

Algo está errado. 

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Os Túneis III

A presidente aderiu ao facebook. Era a voz de todos. Podia agora aceitar todos como amigos. Ver que fotografias tinham. Que comentários faziam. Que causas apoiavam.
Queria conhecer as vozes que a compunham.

Lembrou-se do seu discurso que não era seu. Tinha a aplicação do facebook no telemóvel. Clicou “upload”. Carregou o discurso para a sua página. Depois, guardou o telemóvel, no bolso de trás das calças. Os assessores chamavam-na. Ela pediu um momento. Tinha de ir à casa de banho. Não o disse assim. Foi vaga. “Esperem só um pouco, por favor”. Entrou na casa de banho. Dirigiu-se a uma das cabines. Fechou a porta. Desapertou as calças. Puxou-as para baixo.
Ouviu um barulho, na água da retrete.
A presidente, de calças e cuecas para baixo, via o seu telemóvel afundar-se, com o discurso, os amigos, os likes e os comentários e os likes nos comentários. A verdade, era uma mentira afundando-se na merda da água.

Sim, a poesia tem os seus momentos.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A Social World on the Edge of Oblivion II

Os pc’s deixaram de funcionar.
Acabaram-se os comandos, os cd’s, os dvd’s, blue-ray’s, downloads, patches, keygens,… A energia não é um brinquedo.

We stand on the Edge of Oblivion.

Então as crianças trouxeram os pc’s para a rua, atiraram-nos ao chão, partiram-nos, pontapearam-nos. Desfizeram as máquinas.
A destruição é o prazer derradeiro.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O Discurso III

A presidente precisou de um momento só. Mas sabia as opções que tomara.
A sua vida era as pessoas.
A sua solidão era um homem: O seu marido.
Tentou explicar-lhe que era uma mulher. Que o amava. Mas ele não acreditou. A sua verdade deixara de ser credível.
A presidente ligou para o seu fantasma. Encomendou-lhe um discurso. Decorou-o. Tornou-o seu. Moldou nele a sua própria humanidade.
Salvou o seu casamento.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Cidade Obediente VII

Vagueava e era infeliz. Sofria como nunca quisera sofrer. Perdia forças. O tempo deixara de se dividir. Dormitava permanentemente.

Quando deixou de conseguir andar, pensou na vida.
Todos fazem os mesmos caminhos. Todos vão aos mesmos sítios. Todos regressam da mesma maneira Abandonaram-se os interstícios. Deixou-se de vaguear.

O objectivo não era a verdadeira doença.
Mas tinha o odor anti-séptico da imunidade.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

The spectacular is of very little use in the field of human habitat* IV

Entrou dentro de casa. Pousou a sua guitarra. Jantou calado. A sua guitarra no canto. Viu televisão sem som. A guitarra calada. Deitou-se.
Ouvia os seus vizinhos.
Conversavam através das paredes finas.
Confessavam coisas seguras, a dois, protegidos pela casa.
Ele ouvia tudo.
Mas ninguém o ouviria.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Os Túneis II

Hoje a mulher não se quis carregada. Entrou em casa. Perguntou ao marido, “como foi o teu dia?”.
Gritou pelos miúdos. Nada se ouviu.
Soletrou, “MacDonald’s”.
O marido respondeu. Os miúdos correram. “O dia foi bom”. Pularam contentes. E o marido mandou, “anda mulher”.
Nessa noite jantaram em família. Alimentando-se convenientemente. Os miúdos aos gritos com a merda dos brinquedos do Happy Meal. O marido, ofegante, procurando foder as artérias, mergulhando toda a batata no molho amarelo.
Ela sorriu. Abriu bem a boca e rasgou, de uma só vez, dois pedaços de hambúrguer, alface, queijo, cebola, pickles, molho “especial” e o pão com sésamo. Mastigando tudo até se tornar numa pasta compacta.
A poesia tem os seus momentos.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Apagaram-se as Linhas do Sofrimento

Na rua cruzam-se duas mulheres.
Uma veste-se do trabalho.
Outra veste-se desportiva.
Uma carrega as compras para casa.
A outra corre sem peso.
Uma está cansada.
A outra procura o cansaço.
Uma prepara o jantar.
A outra abre o frigorífico.

Algo se perdeu.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Cidade Obediente VI

Ela saía para andar e já nem sabia almoçar.
Esquecia-se de voltar para casa.
Lembrava-se que já não tinha casa.
De noite era violada por outro, igual a ela.
Não gostava.
Dormia sozinha e era miserável, ali, no meio da rua.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

The spectacular is of very little use in the field of human habitat* III

Ele chega ao seu prédio e este está sujo. Na fachada, a poeira e a poluição cobrem os graffitis e os tags manhosos.
Ele entra, sobe no elevador, vê escrito, dentro daquele compartimento, todo o tipo de nomes, riscados sobre superfícies metálicas, para perdurarem no tempo. Vê pilas e bonecos ordinários, corações ligados a símbolos matemáticos.
Sai no seu andar.
Roda a chave, na porta de casa.
Abandona o pincel e o balde vazio que trazia. Deixa-os do lado de fora. Pensa na maldita da gorda.
Entra em casa. Tudo está branco. As paredes, o chão. O hall não tem nada. A sala também não. Dirige-se à casa de banho. Despe-se e introduz tudo no cesto da roupa. O espelho mostra-o nu.
Toma banho. Quando sai, o espelho está embaciado. Ele desenha sobre o espelho.
No dia seguinte, repete tudo. Mas, antes de tomar banho, repara que o espelho perdeu os seus desenhos. De novo, só sobra ele, nu.


* Shadrach Woods

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Cidade Obediente V

Ela variou nos percursos que fazia, a pé.
Descobriu novos caminhos pela cidade.
Descobriu lugares que nem sequer tinham pessoas.
Esqueceu-se de ir trabalhar.
Esqueceu-se que havia uma hora de almoço.
Voltou para casa.
O marido trocara-a, por outra.
Ela não se deitava.
Ia andar de noite.
Esquecia-se que era de manhã.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Cidade Estagnada III

Gorda, suada e pobre. Ela regressa a casa. Não chove, mas carrega na mesma o guarda-chuva, porque lhe compete carregar o peso da incógnita.
Chega ao muro que fora amarelo. Vê que muda, outra vez. Vê um homem, a pintar o muro, a escrever no muro. Vê o balde de tinta, o amplo pincel e vê que ele não lhe liga.
A gorda ergue o guarda-chuva e com ele, bate no homem.
O homem, a princípio não reage, surpreso. Depois riposta. Prega-lhe um murro. Ela cai, tropeça no balde, aterra sobre a tinta.
Regressa a casa. Carregada, suja, magoada, pintada, suada, gorda, pobre e miserável. Ridícula, por algo tão simples como existir.
Pergunta ao marido, “como foi o teu dia?”.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Fantasma no Escritor Fantasma

Ele escrevia apenas palavras. Mas nunca lhes dava uma voz.
Escrevia para os outros o lerem. Alto.
Escrevia para que os textos não fossem seus.
Entregou o discurso à presidente. Foi para casa. Beijou a sua mulher. Jantaram os dois. Luz das velas. Vinho morno. Talvez amor.
De madrugada, na cama, depois de tudo, ele quis conversar. Falou sozinho durante minutos. Ela calou-o.
Às vezes não gostava de o ouvir.
Às vezes não parecia ele.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Cidade Obediente IV

Ela passou a ir a pé, para o trabalho.
Chegava atrasada e era ameaçada.
Mesmo assim, saía à hora do almoço, apenas para andar.
À tarde, chegava atrasada.
Depois de mais ameaças, regressava a casa, a pé.
Não encontrava o marido.
Deitava-se e sorria sozinha.
Dormia.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

A Social World on the Edge of Oblivion I

We Stand…

As ruas enchem-se com as crianças.

On the Edge of Oblivion.

Já não há brinquedos com que brincar. Os pais desistem num canto. Aos putos resta-lhes agarrar no giz.

We stand on the Edge of Oblivion.

Traçar a recta na rua. Sobre o alcatrão. Desenhar as linhas.

The Edge of Oblivion.

Os velhos vivem os umbrais. As crianças saltam. Esfolam joelhos. O precipício é a rua.

A sirene toca. Os velhos no umbral enchem as suas rugas com marcas da emergência. Os pais desistem encolhidos, sob os sons encarnados. Os miúdos traçam os seus jogos, com o sangue dos joelhos.

We stand on the Edge of Oblivion.
We stand on the Edge of Oblivion.
We stand on the Edge of Oblivion.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

The spectacular is of very little use in the field of human habitat* II

São duas caixas. Cada uma contém uma porção individual. Ela poisa-as sobre o balcão da cozinha. Não há panelas, não há tachos nem travessas. A cozinha está limpa. A ilustração nas caixas mostra uma refeição colorida, sobre um prato, fumegante. Não há erro, não há imperfeição.
As imagens alimentam tudo o que não é fome.
De dentro das caixas de cartão, ela retira as embalagens de plástico, compartimentadas. Cada elemento da refeição, separado. A caixa de cartão sugere: misturar depois de pronto. Instrui: 1 minuto no microondas, a 800 W.
Ela assim o faz. Duas embalagens. Dois minutos, um a seguir ao outro.
Ela serve o jantar em dois pratos.
O resultado não se parece nada com a imagem.
Ele aguarda, desapontado. Desejava as panelas sujas, os tachos, as travessas e ela, de avental, a cozer, a fritar, a mexer. A sua mulher, a cozinhar.
Mas comeu, porque a fome é animal.


*Shadrach Woods

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O Discurso II

Entregaram o discurso à presidente. É preciso medo, disseram-lhe.
O medo ainda pertence ao lado animal. A obediência tem o seu lado irracional.

A presidente leu o discurso. Deu-lhe uma voz. Decorou-o primeiro. Conferiu-lhe verdade depois.
Recomendaram-lhe falar em inglês.
O povo aplaudiu, sem perceber. Ela falava noutra língua. Era boa presidente. Falava línguas que eles não sabiam. Era-lhes superior.
O resto aplaudiu igualmente. A presidente era um deles. Também sabia falar noutra língua. Era-lhes igual.
A presidente inspirou, antes da última frase do discurso. Ensaiara-a em frente a um espelho. Queria gritar sem o parecer fazer. Ser imponente, sem subir a voz.

“We Stand on the Edge of Oblivion”
“We Stand on the Edge of Oblivion”
“We Stand on the Edge of Oblivion”

O medo domestica os animais.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Cidade Obediente III

Ela variou nos transportes para o trabalho, optou por carreiras diferentes.
Saía à hora do almoço para apanhar ar.
Apanhava transportes diferentes para regressar a casa.
Não jantava com o marido.
Ele nem lhe perguntava por amor.
Dormia.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O Discurso I

Uma presidente existe para traduzir. Procura saber as vozes do povo. Transmite-as.
Mas a voz da própria presidente tem peso: Vale mais que as outras.
A presidente fala e as vozes do povo consentem.
O povo é incapaz.
A confiança é a sua melhor desculpa.