segunda-feira, 31 de outubro de 2011

13. Gonzalo Torrente Ballester e talvez a morte

Não fosse a boleia dada pelo diabo e teria, por certo, perdido a morte de Gonzalo. “Agora, já toda a Galiza se pode elevar nas brumas”, disse-me o diabo, que era padre jesuíta, como é óbvio. Foi o mesmo diabo quem, sorrindo, me apresentou toda a mui católica família de Gonzalo, a qual cumprimentei religiosamente. Finalmente vi Gonzalo, estendido no caixão, e mostrei-lhe a Doménica. O morto respondeu-me, com aquele seu ar mandrião, “essa já eu escrevi deste lado”.



sexta-feira, 28 de outubro de 2011

12. Khan morto e a identidade

Lou sonhou como era morrer sem cicatrizes.
As flores em torno do seu caixão posicionavam-se simétricas. Os bilhetes apresentavam condolências. Vinham de vários ateliers de arquitectura. Lia-se neles: “para o nosso colaborador”; “para o nosso antigo colaborador”; “para o sr. arquitecto”. A sua esposa, porque era assim que toda a gente se referia à sua esposa, pagou o funeral com o dinheiro que haviam poupado. E não chorava. A vida é assim, ela aceitava-a.

Um dia, Lou sonhou como era morrer sem cicatrizes: era confortável.
Então acordou, pegou no seu bilhete de identidade e riscou-o: riscos sobre o seu nome, riscos sobre a sua morada.
O seu nome eram as cicatrizes.
A sua morada eram as cicatrizes.
A sua identidade…
...e foi trabalhar.



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quinta-feira, 27 de outubro de 2011

11. Pêro Covilhã e a identidade

Cumpriu os rituais todos. Ninguém nele notou. Saiu da cidade santa.
Só quando já não via Meca, se lembrou: não sabia quem era.
Não se importou. Imaginou uma espada e um reino longínquo e misterioso.
Partiu e todos os historiadores trataram de o saber.



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quarta-feira, 26 de outubro de 2011

10. Pratt e o trabalho

O homem foi morto mesmo em frente a Hugo. Depois de o fazer, o assassino olhou para Hugo, era teu amigo? Hugo pintava e encolheu os ombros. O assassino sorriu e disse que gostava dele. Ofereceu-lhe boleia e nessa noite beberam uns copos. O resto da semana, Hugo trabalhou.



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terça-feira, 25 de outubro de 2011

09. Pulp Fiction

Prever demais implica sempre uma morte. Porque o futuro de um homem tem um limite curto. Daí um profeta ter nas suas palavras algo de assassino. Noutro dia conheci um profeta, ele estava na rua, comia um hambúrguer (“royal with cheese” se aceitarem o intertexto). Respondeu-me o futuro antes de eu lho perguntar. Disse-me simplesmente que íamos morrer.



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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

08. Ricardo Reis e os outros

A Carolina, na Argentina, falava com os argentinos. Estes, disseram, gostavam muito de ler Saramago. Depois, como se fosse óbvio, falaram do Pessoa. Ao que um deles lhe perguntou: “E esse tal de Ricardo Reis, que tem ele a ver com o Pessoa?”



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sexta-feira, 21 de outubro de 2011

07. Pessoa e os outros

Um dia, Fernando deixou de me responder às cartas. Quando o tornei a encontrar, ele pediu desculpas. Eu compreendi. Era um homem demasiado interessante. Daí se dar com si próprio.



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quinta-feira, 20 de outubro de 2011

06. Orwell e a Máscara de Alan Moore

Existem homens que são diferentes de outros homens.
Então acontecem as revoltas:
E, nos países europeus, todos passam a usar uma máscara.
E, nos países árabes, todos passam a usar uma máscara.
E, nos países africanos, todos passam a usar uma máscara.
E, na China e nos países asiáticos, todos passam a usar uma máscara.
E, na América do Sul, nos Estados Unidos e em todo o mundo, todos passam a usar uma máscara. E todos ficam iguais. Já ninguém se distingue. Os anos passam. Há uns que se tornam mais iguais que outros.
Até que um dia, alguém tira a máscara.



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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

05. Siza e algo mais

A mão tremia-lhe porque a mão é uma voz. O fumo, de um cigarro, oculta. Não é mais que uma neblina. É português, e os portugueses querem sempre ocultar o incompreensível, para lá do nevoeiro. As palavras são sons cheios de anos. Arrasta a voz da mesma forma que arrasta uma recta. A mão treme e a recta já não é perfeita. Mas não é a perfeição feita de imperfeições? A voz que diga que sim, que não, que diga o que quiser. Por detrás do fumo, continua a mão.
Tremer é apenas algo mais.



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terça-feira, 18 de outubro de 2011

04. Dora e a fome

Na fotografia só estava ele e o cão. Ele, acabado de sair da água, de fato e prancha na mão. O cão, depois de esperar, ao seu lado, a correr.
Mas, depois da fotografia, ele subiu a estrada até à carrinha. Tirou o fato. Limpou-se a uma toalha coçada. Deitou-se e o cão ganiu. Dora mandou-o calar. Tinha fome. Mas há imagens que são alimento.



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segunda-feira, 17 de outubro de 2011

03. Bolaño e os Sonhos

Encontrei o Roberto e ele era uma estrela de rock. Segurava um cigarro e, como todos os mortos, tentava parecer uma fotografia. Disse-me.
- Mais importante que foder, é ver o Mário de Sá-Carneiro foder.
Nessa noite, segui pelos caminhos vicinais.



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sexta-feira, 14 de outubro de 2011

02. Hemingway e o Adeus às Armas

Ernest pensava no futuro:
Um homem sem pernas descobre que consegue viver, embora viva sem pernas.
Para avançar não são necessárias pernas. Avançar não é uma questão motora.

Ernest pensava na lógica:
Um homem sem vontade de viver descobre que consegue viver, embora viva sem vontade.

Mas isso eram demasiadas suposições e Ernest era um tipo real. Imaginar era avançar e ele não sabia imaginar.
Então usou as pernas e escreveu um livro sobre recuos. No fim, não lhe restava nada.



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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

01. Tadao Ando antes do betão

Antes de se perceber o que está para lá das palavras, talvez seja necessário perceber o que existe antes.
Compreender que são apenas marcas de tinta preta, sobre a textura e a espessura do papel. Como o antes da visão é o tacto, tudo isto se pode descobrir com a mão. Assim se descobre a capa de um livro como uma crosta, daí que oculte tantas feridas. Mas esta última metáfora é coisa de escritor e Tadao, para lá das mãos (do boxe, da cofragem), queria era ser arquitecto.



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