segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Escultura


Queria tirar uma fotografia à praça maior da Europa.
Uma rapariga apareceu.
A rapariga figurou na fotografia da praça.
O outro disse não. Não queria a rapariga, só a praça.
A justificação da fotografia era a rapariga conferir escala.
«Mas a praça não merece ser suja pelo homem.»

Há quem prefira ver o mar.
Há quem prefira ver a ilha.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Riot Bucólico


Um arquitecto vivia no campo.
O filho teve uma dúvida. Perguntou-lhe sobre a cidade.
O arquitecto apontou para um livro.
«A cidade está naquele livro.»
A mulher chamou-o. Disse-lhe: «Os teus edifícios estão nas notícias».
O arquitecto viu o bairro social onde o povo protestava.
Viu como o povo atacava os seus edifícios.
Disse: «A arquitectura não tem culpa das pessoas.»

Há arquitecturas que são ilhas.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Ferro II


Era noite e o arquitecto mais velho continuava sobre o corrimão.
Juntou-se outro mais novo.
Perguntou-lhe se não era extraordinário:
«Estamos a mudar a história, estamos a mudar a história da cidade.»
O arquitecto mais velho olhou para o horizonte.
Viu as luzes longe, no continente. Disse:
«Daqui, a cidade não tem homens.»
O arquitecto mais velho tinha palavras de ferro.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Ferro I


Ele era o arquitecto mais velho de todos os arquitectos que iam no barco.
Apoiava-se num corrimão de ferro, na borda do barco.
O corrimão possuía ferrugem: era o tempo.
O ferro ganhava ferrugem.
Perdia consistência. Alterava a cor. Desistia da opacidade.
Mas o ferro nunca deixava de ser ferro.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

À Deriva IV


O barco parecia parte do total.
Era um edifício no meio dos outros edifícios.
Era uma parte somada às outras partes da cidade.
Os arquitectos entraram. Todos.
O barco partiu.
A cidade manteve-se cidade.
O barco tornou-se um mundo à parte.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

À Deriva III


Um dia, os arquitectos mais conhecidos da europa disseram: «vamos debater a cidade».
Todos concordaram.
Que cidade escolheriam para dar lugar ao debate?
Todos pensaram. Ninguém reuniu consenso.
As cidades europeias decaíam.
Um deles falou: «a era da máquina».
Todos concordaram.
Outro acrescentou: «e se fosse num barco?».
Reuniu aplausos. Reuniu consensos.
A lógica da máquina traria lógica à cidade.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

À Deriva II


O arquitecto deu como exemplo um escritor.
«O escritor escreve o seu livro.
Passa a viver no meio das suas palavras.
Um dia, questiona-se sobre os contornos do livro.
Não os vê por estar entre eles.
Tomou parte do total.»
As partes desconhecem o seu total.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

À Deriva I


Perguntaram a um arquitecto sobre cidade.
Ele respondeu com o mundo: O mundo é uma cidade.
Mas mundo nem sempre significou todo o mundo.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Anatomia da Dispersão VI


O professor perdera um braço.
A ferida perdera o rumo.
O professor ia morrer na mesma.
Nunca mais tornaria a sarar.
Dispersão é o fim das coisas sem rumo.
O cancro era todo o seu corpo.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Anatomia da Dispersão V


«Cancro». Disse o médico. A ferida degenerou.
Na televisão, a multidão dispersava. Nada sobrou senão a destruição.
«Vai perder o braço».
«Não há outro rumo?».
«Este é o rumo a tomar».
«O único?».
«Há que ser objectivo. Não se queira dispersar».

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Anatomia da Dispersão IV



Como se chama uma ferida que esqueceu o sarar?
Talvez ferida sem rumo.
(As coisas sem rumo tendem a se dispersar)

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Anatomia da Dispersão III


A ferida morreu. Mas existia a cicatriz.
Uma cicatriz é a forma física da memória.
O homem lembrava-se e coçava. Coçava a memória.
O tempo é circular.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Anatomia da Dispersão II


O professor olhava para o braço. Esfolara-o. Transformara-se em ferida. Infectara.
O professor limpou-o com água oxigenada. Cobriu-o de iodo.
O pus subentende uma guerra.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Anatomia da Dispersão I


Um professor dava aulas de educação física. O professor tentava agrupar os alunos. Mas eles estavam sempre a fugir.
No meio da dispersão, esfolou o braço numa parede.
Muitos miúdos.
Muito afastados.
Muito insubordinados.
Como se controla o muito?

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Riot III


Arrancavam as portas das casas. Partiam bancos e cadeiras. Destruíam montras e cafés.
Os tiros surgiram de um lugar invisível.
Mas a multidão não se afastou.
Um homem sucumbe facilmente. Mas como se mata uma multidão?